segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Acorda, mamãe!

A mãe trancou a porta. Estava sozinha com a sua única filha de 2 anos. Era solteira. A gravidez foi resultado de um caso. Nunca quis ir atrás do pai, pois não valia a pena. A casa ficava numa região com poucos moradores. Cidade pequena do litoral paranaense. De vez em quando, surgiam uns andarilhos mal vestidos pedindo comida. Porém, a movimentação de pessoas era fraquíssima.

Após trancar a porta, caminhou alguns passos em direção da cozinha e caiu. Infarto fulminante.

A filhinha de 2 anos caminhou até a mãe. Sacudiu, sacudiu e nada.

- "acóda", mamãe!

E nada.

Ela começa a chorar. O choro fica cada vez mais forte e estridente em alguns momentos. Depois de algumas horas, a menina se cansa. Dorme ali, ao lado do corpo da mãe morta, no chão mesmo.
4 horas depois ela acorda. Nada da mãe levantar.

Vai até o banheiro, levanta a tampa do vaso, senta nele e faz xixi. Não lava as mãos.

Caminha até a cozinha. Está com fome. Come uns biscoitos que estavam em cima da mesa.

Vai até a sala. Liga a televisão. Muda de canal até achar algum programa infantil que gosta. Permanece lá, assistindo, deitada no sofá.

Escurece. Ela começa a ficar com medo. Principalmente porque alguns cachorros uivavam forte perto dali. Vi em todos os cômodos da casa para acender as luzes. O corpo ainda está lá, intocável. Bebe água e come pão. Porém, o medo não passa. O choro volta. Berros e mais berros. Tenta abrir a porta da frente, que a mãe havia trancado antes de falecer. Não consegue. Não entende aquele mecanismo de virar a chave... Além de chorar, agora ela bate na porta com suas mãozinhas, na esperança de que aquilo se abrisse. Depois de alguns minutos, desiste. Deita no sofá novamente e dorme.

Acorda na manhã do outro dia. Faz coisas semelhantes às do dia anterior.

...

Uma semana depois a menina está com fome. Porém, a comida havia acabado. Sem forças, não conseguia nem mesmo chorar. O corpo da mãe cheirava mal, o que a fazia evitar de chegar perto dele.

...

Uma semana depois, a menina está deitada no sofá de sempre, agonizando. Não sabia muito o que estava acontecendo, mas queria que aquela sensação amortecedora acabasse logo. A casa estava toda revirada... Ela havia procurado comida em todos os lugares. Tudo cheirava mal, inclusive a criança, pois não havia tomado banho. Claro que a maior parte do mal cheiro vinha do corpo da mãe já em decomposição.
...

Alguns dias depois, a menina ainda conseguiu expelir algumas lágrimas, numa mistura de tristeza e medo. Seu corpo todo doía. Ela não tinha forças. Estava agonizando. Puxava a respiração e o ar não vinha. Estava se sufocando. As lágrimas escorrendo e a dor aumentando. Ao olhar para para o chão, avistou uma pequenina formiga correndo e carregando folhas nas costas. Puxou o último fôlego e faleceu.

...

Do lado de fora da casa, um carteiro batia palmas. Estranhou o silêncio. Insistiu, insistiu. Acabou desistindo.

O sol se pôs. Os cachorros uivaram mais alto naquela noite.

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

O que acontece quando o amor acaba?



Você pode ser muito cético. Borboletas voando ao seu redor, brisa do mar, céu azul, ou estrelado, ou só o lusco-fusco, ou só o branco da neve, ou nada, e você nem aí. O que enxerga são estruturas. Cada sala é uma ante-sala para outro cômodo. A vida é vivida entre essas paredes. Você pode ser cético e cego para essas belezas. Porém, quando chega o amor... Ah, suspiros, soluços, bochechas ruborizadas, flashbacks dos encontros, projeções do futuro a dois, injeções de ânimo diário; sorrisos instantâneos ao saborear o gole de café. É o amor. Troca de olhares, carinho, cinema. Mãos dadas, bocas dadas, almas dadas e lavadas. Afagos, sossegos, sonetos solitários. Um solo seco é semeado; fertiliza-se. Visualizam-se frutos, árvores, jardins. Cuida-se desses jardins imensos. Rega-se dia após dia. O afeto contínuo do cotidiano. Visualizam-se a velhice, as virtudes de toda uma vida, as feridas. Cobrem-se as cicatrizes; atrozes cicatrizes.

Então, num belo dia - ou não tão belo assim - o amor acaba. Todo aquele esplendor se desmancha, se ofusca. O jardim se seca. As cachoeiras secam. Os pássaros e as borboletas somem. Os sorrisos se fecham, assim como as portas... Assim como as almas. Por algum tempo, vive-se num mundo cinza, monocromático. Tornamo-nos lobos sedentos, raivosos, asquerosos. É a transição. Não somos fáceis nesses momentos. Ficamos frágeis. Somos de vidro. Quebramos com um simples toque. Quanto maior a estatura do amor que desmoronou, maiores os efeitos da queda. E você pode cair com tanta força que o impacto é capaz de criar uma cratera, que te engole. Não tem como sair dela sem se esgotar. Mas você sai.

E surge um novo amor. Num relampejo, aparece o arco-íris. Renascem as flores no seu jardim. E o sorriso ao saborear o café quentinho ao tocar os lábios. O céu fica azul. As borboletas ressurgem, com as amigas andorinhas, com o cheiro da brisa do mar, com as luzes, a felicidade.

E some o abismo, some o sofrimento, secam-se as lágrimas. Fica só você e você, ao olhar para o espelho e reverenciar uma nova manhã. Encara-se. Observa-se. O reflexo faz o mesmo, óbvio. Na mente somente uma certeza: é muito bom amar a si mesmo. Você se ama. É completo em si.

Até que num belo dia - esse é belo ? - encontra um novo amor.

Um amor pelo outro.

Dará certo dessa vez?

Na dúvida, não traia aquele que está do outro lado do espelho.